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Foto do escritorOutro Ponto

Resenha do Filme "Human: Uma viagem pela vida"



O que faz de nós seres “humanos” — na totalidade da palavra — é um questionamento existente desde o início da civilização. Os primeiros estudiosos que se dedicaram a buscar respostas na intenção de compreender a humanidade afirmaram que o que nos diferencia dos outros seres vivos (plantas, animais) é o fato de possuir cultura, atrelado a capacidade de raciocinar. “Penso, logo existo”, foi uma frase proferida pelo filósofo francês René Descartes e que exemplifica a máxima do que é o ser humano, ou seja, a nossa capacidade de pensar, questionar e raciocinar nos diferencia dos demais seres vivos.


O documentário “Humano — Uma viagem pela vida” (Original “Human”) foi produzido e dirigido pelo fotógrafo francês Yann Arthus-Bertrand tendo sido lançado no ano de 2015. No documentário, homens e mulheres de diferentes partes do mundo narram suas histórias de vida e buscam definir o que faz de nós humanos. Entre tantos temas que são abordados, podem-se destacar os depoimentos sobre o amor, felicidade e pobreza.


A nossa humanidade é, por si só, falha e contraditória. Costumamos definir as pessoas com base em padrões que, ao longo da vida, nos foram ensinados como certos, por isso é comum cometermos julgamentos carregados de “Pré-conceitos” que nos impedem de ver as situações sob a lente do outro. O conceito de alteridade que Laplantine (2003) fala é essencial ao assistirmos o documentário “Human”, pois só assim chegamos perto de compreender a origem da fala do outro e o quanto ela está carregada de elementos de sua cultura, tais como crenças, costumes e vivências.


No primeiro depoimento do documentário, um homem negro chamado Leonard conta a sua história de vida e descreve os momentos em que apanhava de seu padrasto, esse que justificava a violência física como um ato de amor. No desenrolar do depoimento, ele afirma que considerava o amor como “O máximo de dor que alguém pode suportar”, por isso agredia as pessoas que faziam parte ou não do seu convívio. O que se pode observar claramente, é que o processo cultural no qual ele foi educado foi responsável por moldar os traços de sua personalidade.


Ao ser educado acreditando que violência física era uma demonstração de amor, cresceu associando à ideia de agressão ao amor, o fato de ter se tornado uma pessoa violenta não foi uma escolha, mas sim um processo de aprendizado, reflexo do meio em que vivia. Ao longo do depoimento, ele conta que aprendeu o que era amor de verdade quando foi perdoado por alguém a quem fez mal.


Seria algum tipo de pretensão, já que não houve o depoimento dessa pessoa que o perdoou, afirmar que ela o fez porque compreendeu o contexto dele, mas o que se pode afirmar é que o perdão parte de uma concepção divina de que devemos perdoar o outro assim como gostaríamos de sermos perdoados, então, há nesse ato uma ação de empatia com o próximo. Pela emoção que o homem transmite ao descrever o momento em que foi perdoado, pode-se até supor que aquele era um momento que ele nunca imaginou que fosse passar, em sua concepção não se enxergava merecedor do perdão. No fim de seu depoimento, ele afirma que lhe ensinaram de maneira errada o que era amor.


Acredito que esse ponto seja um dos pontos altos do documentário, por nos fazer questionar até que ponto estamos dispostos a entender o outro compreendendo a sua cultura, suas vivências e o meio em que ele se desenvolveu.


Em outros depoimentos do documentário, mulheres discorrem sobre o ser mulher na sociedade, uma delas é questionada se gostaria de ter nascido homem, e ela responde que não, pois a vida de um homem é muito fácil. Em outro depoimento, uma mulher afirma que fica extremamente revoltada quando lhe dizem que é necessário chamar um homem para realizar determinada tarefa, pois desmerecem ela simplesmente pelo fato de ser mulher.


O que ela quer dizer quando afirma “Se tenho duas mãos, para que homem?”, é que, fisicamente e intelectualmente, não há nada que a impeça de pegar uma caixa que está na prateleira de cima, mesmo que para isso tenha que dar um pulo ou subir em uma cadeira. Porém, culturalmente, as pessoas que a cercam julgam que aquela função só pode ser realizada por um homem, por ele ser considerado maior e mais forte. Nesse sentido, pode-se perceber que há um determinismo biológico quando a julgam incapaz de realizar a tarefa, e mesmo sem perceber, ela questiona essa construção cultural se recusando a seguir imposições.


O que se pode notar nesses depoimentos é a construção social feita ao longo das décadas sobre o que é ser homem e o que é ser mulher, juntamente com os papéis designados para os dois na sociedade. No livro “Cultura: Um conceito antropológico”, Laraia discorre sobre essas construções e mostra, a partir de exemplos, que em outras sociedades a mulher é responsável por funções que na nossa cultura são definidas como “masculinas”.


Quando uma das mulheres afirma que o homem tem vida fácil, mesmo que não perceba, está evidenciando uma construção cultural a que fomos condicionados ao longo do tempo, que permite ao homem privilégios proibidos às mulheres. Eles são considerados mais fortes e racionais, enquanto as mulheres são definidas como frágeis e sentimentais.


Os fatores culturais são condicionantes do nosso modo de vida. Biologicamente, não há nada que impeça uma mulher de segurar um objeto pesado, porém, o uso do equipamento biológico é condicionado por fatores culturais e, devido a eles, somos ensinados que determinadas funções só podem ser realizadas por um homem.


Um dos depoimentos de maior impacto no documentário é do ex-presidente do Uruguai, José Mujica, que discorre sobre a sociedade de consumo. Ele fala sobre os anos em que esteve preso e mesmo sem ter lido nenhum livro, afirma que fez muitas reflexões sobre a vida. Sobre a sociedade de consumo, Mujica diz que quando compramos algo, não pagamos com o dinheiro, mas com o tempo de vida que perdemos para ganhar aquele dinheiro. Escutamos diariamente o clichê de que “Dinheiro não traz felicidade”, porém não o internalizamos.


Estamos buscando constantemente o dinheiro e a segurança que acreditamos que ele possa trazer. Existem compras por impulso e compras sem necessidade alguma. Essa é uma das jogadas do documentário, pois há o depoimento de pessoas que passam fome e por fim o depoimento de Mujica que nos faz questionar o modo como vivemos, e, mais do que isso, o quanto e com quanto vivemos.


Partindo de uma premissa pessoal, acredito que todo o conceito de alteridade no documentário se resume ao final, quando a mulher chamada Roslin sugere “Vamos trocar de lugar. Vamos! Você vem aqui e vive como eu, eu vou aí e vivo como você. A gente se encontra no meio do Equador e joga uma partida de golfe”. Enxergar-se no lugar do outro é uma das premissas da alteridade, entender a sua cultura e respeitá-la. Quando interrogada sobre determinada questão, Roslin simplesmente afirma “venha aqui e viva como eu”, ou seja, ela afirma que de nada adianta explicar com as palavras, a resposta só será possível se nos colocarmos no lugar dela.


Esse documentário é uma obra atemporal, que nos faz questionar nossa vida e humanidade. A partir dos depoimentos de pessoas dos mais diferentes países podemos perceber o quanto estamos presos a uma única cultura que nos cega quanto às demais. Com apenas uma lente com a qual enxergamos o mundo, nosso olhar torna-se carregado de preconceitos.

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